sábado, 23 de outubro de 2010

A Mudança

Rubem Alves


Minhas netas: E sem de nada nos avisar meu pai chegou e anunciou sorridente: “Vamos nos mudar!”
Quando é que as pessoas mudam? As pessoas mudam por duas razões. Primeiro, se elas são obrigadas a mudar. Foi o que aconteceu com os índios. Eles eram donos de tudo por aqui. Vieram os portugueses, com armas de fogo, e por tiro e força os obrigaram a mudar para os lugares distantes da selva onde hoje eles se encontram. Foi o que aconteceu com os negros que viviam na África. Aprisionados pelos brancos, foram arrancados de suas casas e mudados à força para o Brasil, amarrados em navios negreiros, para trabalhar nas plantações como escravos, sob pena de chicote e morte. Foi o que aconteceu com muitas pessoas no Brasil no tempo da ditadura que, para fugir da prisão e da morte, tiveram de se mudar para outros países. Para esses, mudar foi uma tristeza e um alívio. Segundo: elas mudam quando querem. Mudam quando não estão felizes no lugar onde moram. Mudam para ter uma vida melhor. Foi o que aconteceu com os imigrantes portugueses, italianos e japoneses: deixaram os seus países e se mudaram para o Brasil porque a vida, no lugar onde viviam, estava difícil. É o que acontece com os nordestinos que deixam o nordeste para trabalhar em São Paulo. Cansados da vida dura e da pobreza, sonham que, se se mudarem para São Paulo, vão ficar ricos. E é o que acontece também com aqueles que, cansados com a vida da cidade, vão para o interior, na esperança de encontrar tranqüilidade.
Mas eu estava muito feliz lá na roça. Para mim não havia vida melhor. Na roça minha única experiência ruim era quando eu tinha dor de dente. Por mim eu não mudaria. “Mudar para onde?”, perguntei. Eu queria saber o destino que me aguardava. Meu pai percebeu o que estava acontecendo dentro de mim. E ao invés de me responder dizendo o nome da cidade ele respondeu falando sobre uma coisa que logo me fascinou. “Vamos nos mudar para uma cidade que tem trem-de-ferro!”
Eu não sabia o que era um trem-de-ferro. Eu nunca ouvira falar em trem-de-ferro. Perguntei então: “E o que é trem-de-ferro?” Meu pai não respondeu. Foi até a prateleira onde se encontrava a enciclopédia... “Encyclopaedia”: era assim que estava escrito. Antigamente as palavras não eram escritas da forma como as escrevemos hoje. A forma como eram escritas contava sobre os países onde haviam nascido, as línguas de onde provinham, seus sentidos originais. Nisso as palavras se parecem conosco: elas nascem!
Você nunca se perguntou sobre quando e onde uma palavra nasceu? Por exemplo: a palavra “bola”. Quem será que, pela primeira vez, disse os sons “bola” para significar uma bola? Por que será que esses sons “bola” e não outros, foram os escolhidos? E o interessante é que uma outra pessoa tem de ter entendido o que se queria dizer com esses sons. Se falo um som que ninguém entende, esse som não é palavra. Ainda hoje as palavras nascem. Palavras novas que não estão no dicionário têm o nome de “gíria”. Mas quem será que inventou a palavra “gíria”? Ela não é gozada? Os jovens inventam palavras novas, saem por aí falando, os outros jovens os entendem, mas nós velhos não entendemos. Muitas das palavras que usamos nasceram em outros países onde se falavam línguas que não entendemos: o Grego e o Latim, por exemplo. Pois a palavra “encyclopaedia” se escrevia assim para dizer de que língua ela nascera e com que palavras menores fora formada. Ela é formada pela junção de duas palavras gregas: enkyklios, que quer dizer “num círculo” e paideia, que quer dizer educação. Uma enciclopédia é um livro ou coleção de livros que põe, num círculo, as coisas que são importantes para a educação. Quando a gente quer saber uma coisa, a encyclopaedia explica.
Vocês se lembram de que eu lhes disse que o meu pai, seu bisavô, foi rico e ficou pobre. Todas as coisas caras que tinha – casas, automóveis, fábricas – tiveram de ser vendidas para pagar as dívidas. Das coisas que tinha sobraram apenas: o piano “Playel” da minha mãe, com castiçais para velas, presente de casamento importado da França; um relógio de bolso de ouro; uma coleção de livros chamada Biblioteca Internacional de Obras Célebres (foi nessa coleção que meu pai me leu, pela primeira vez, a estória de Robinson Crusoé); e a Encyclopaedia... Como eu estava dizendo, meu pai foi até a prateleira onde se encontrava a Encyclopaedia e procurou o volume com a letra “L” gravada na capa preta, em ouro, e dentro, usando a ordem alfabética (se ele não soubesse a ordem alfabética ele nunca teria encontrado o que procurava; a ordem alfabética é a chave para abrir o conhecimento dos dicionários e enciclopédias) procurou a palavra “locomotiva”. (Pergunte ao seu pai ou professor sobre a origem dessa palavra, “locomotiva”... Ela é formada pela a junção de que outras palavras? Esse joguinho é muito divertido. Igual a detetive: esclarecer os “antecedentes” das palavras...). Aí ele me mostrou fotografias de locomotivas. Mostrou e explicou. Disse que eram feitas de ferro. Que eram muito pesadas. Que suas rodas eram enormes. De tão pesadas não podiam andar nas estradas comuns, de terra: afundariam. Andavam sobre trilhos de aço presos no chão. Dentro delas havia uma fornalha com fogo acesso. O fogo aquecia a água, presa dentro de uma caldeira. Me explicou o que era uma caldeira. Pois a tampa da chaleira, quando a água estava fervendo, não subia? Era o vapor da água que fazia a tampa da chaleira subir. Uma caldeira era uma chaleira enorme que não deixava o vapor escapar. O vapor preso ficava muito poderoso. Tão poderoso que fazia girar as rodas da locomotiva. A panela de pressão é um tipo de caldeira. A força do vapor, dentro dela, é tão grande que, para se abrir, é preciso ou deixar que o vapor saia, levantando-se um chapéu pesado que cobre um pino, ou diminuir a pressão do vapor, pondo a panela debaixo da água fria. Meu pai nada falou sobre panelas de pressão. Naquele tempo elas ainda não haviam sido inventadas. Disse que o vapor, passando por um cano, fazia a locomotiva apitar. O maquinista puxava uma corda para fazer a locomotiva apitar. O apito era a buzina da locomotiva. Quem estivesse sobre os trilhos que fugisse, pois a locomotiva não podia se desviar. Na cabine ficavam o maquinista, encarregado de controlar a locomotiva, fazê-la andar, frear, apitar. E o foguista, que jogava lenha na fornalha, para que o fogo estivesse sempre aceso. Engatados na locomotiva vinham os vagões onde ficavam os passageiros. Da chaminé da locomotiva saíam brasas aos milhares, em virtude do fogaréu que havia lá dentro. De noite era uma beleza! Era como se de dentro da barriga da locomotiva saíssem milhares de estrelas! Mas era preciso ter cuidado. Vez por outra uma dessas brasas entrava pela janela do vagão onde estavam os passageiros e ou fazia um buraco no terno de um homem ou iniciava um pequeno incêndio na cabeleira de uma mulher... Por isso aqueles que viajavam de trem se protegiam com casacos chamados “guarda-pó”, vestidos sobre os ternos, e usando chapéus ou bonés...
Meu pai ria enquanto me explicava a locomotiva. E eu já estava encantado, ao ouvi-lo falar. Queria me mudar para a cidade onde havia locomotivas. Quem sabe, algum dia, eu chegaria a ser maquinista de uma locomotiva? Ele era assim: espalhava risos quando falava. Ele tinha a capacidade mágica de tornar alegres até mesmo as coisas tristes. E, naquele momento, ele precisava ter alegria. Tinha quarenta anos, havia perdido tudo, tinha de se mudar para começar vida nova, a partir do zero, tendo apenas ele próprio, um relógio de ouro e sua capacidade de falar. E seria indispensável morar numa cidade onde houvesse trem-de-ferro. Seu novo trabalho exigiria que ele viajasse. Ele seria viajante: iria de cidade em cidade vendendo coisas...
Eu não me lembro direito do dia da mudança. Lembro-me que me acordaram muito cedo. E me espantei de ver o céu coberto de estrelas. Para mim, menino, céu coberto de estrelas acontecia de noite, quando se ia para a cama. Que estranho! Eu estava me levantando, era manhã, e o céu estava coberto de estrelas...
E foi assim, com o céu coberto de estrelas e o horizonte se avermelhando que eu deixei o mundo onde meus companheiros eram os cavalos, as vacas, as galinhas, os riachinhos e me mudei para o mundo desconhecido onde corriam os trens-de-ferro movidos a fogo e vapor...
l Os trens-de-ferro inspiraram poetas, fotógrafos, compositores. Com o compositor Villa-Lobos virou música de orquestra: O Trenzinho do Caipira. Com a Adélia Prado virou poema: “Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica, mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, atravessou minha vida, virou só sentimento.” E com o Milton Nascimento virou canção: “Maria-fumaça não canta mais para moças, flores, janelas e quintais...”

Como Amar uma Criança

Janusz Korczak: Como amar uma criança...
Rafael F. Scharf
Vice-Presidente da Associação Internacional Janusz Korczak da Inglaterra

A vida de Janusz Korczak é tão tocante que, ao contá-la, é necessário evitar a ênfase patética que se impõe, a fim de permanecer-se fiel àquele sobre o qual falamos.

Ele era, na mais profunda acepção do termo, um homem simples, toda afetação lhe era estranha. É certo que ele não imaginava que seu nome seria célebre, e é por isto que cada vez que o glorificamos publicamente, inaugurando um monumento em sua homenagem, eu me pergunto qual seria o seu comentário se sua boca de pedra pudesse falar.

Sua história foi recontada inúmeras vezes e continuará sendo, porque ela mostra melhor, sem dúvida, não importando o caso particular, o horror inexprimível da última guerra e a exterminação dos judeus poloneses.

Em 5 de agosto de 1942, durante a liquidação do gueto de Varsóvia, os hitleristas ordenaram o agrupamento das crianças do orfanato de Korczak e o envio das mesmas ao campo de morte de Treblinka. O "Velho Doutor" reuniu duzentos pupilos, os fez colocar-se sabiamente em fileiras e, à sua frente, partiu com eles para o "Umschlagplatz", no cruzamento das ruas Stawki e Dzika, onde todos foram colocados em vagões de carga e enviados para os fornos crematórios.

Esta marcha nas ruas do gueto foi vista por algumas centenas de pessoas, e a silhueta pequena de Korczak dirigindo-se para seu calvário, inconsciente de seu heroísmo, fazendo aquilo que lhe parecia evidente, excitava as imaginações. A novidade espalhou-se imediatamente, repetida de boca em boca com a força de detalhes inventados: que Korczak carregava nos braços os dois menores, coisa pouco provável, porque ele mesmo estava doente e tinha dificuldades em andar; que o "Jundenrat" tinha intervindo no derradeiro momento e tinha despachado em seguida um mensageiro atrás da fila, portador de um salvo conduto somente para Korczak, que foi por ele rejeitado com desprezo; que para apaziguar as crianças ele tinha lhes dito que iam em excursão e que eles, confiantes, o seguiam sem choro e sem protesto. Mas nenhum embelezamento é necessário diante dessa verdade nua e crua; não é preciso ajuntar qualquer coisa para torná-la mais eloqüente. A antítese do espírito e das dificuldades é clara e definitiva: um homem sábio por excelência, desinteressado e bom, opondo-se aos covardes, bárbaros obtusos, que se mostravam sob seu aspecto mais satânico.

Entre os milhões de mortes anônimas, a de Korczak tem um grande significado. Nos campos e guetos, ele se tornou para muitos, uma inspiração, pois aí o que mais ajudava a sobreviver era a convicção obstinada e indestrutível que a dignidade humana poderia vencer , embora tudo parecesse provar o contrário.

A imprensa clandestina dos campos mostra bem o quanto esta derradeira caminhada sublime do Velho Doutor foi um reconforto e uma dose de ânimo para seus contemporâneos. A partir daí sua glória tem crescido e o mundo fez de Korczak um símbolo moral.

É preciso que nossa atenção à sua morte não obscureça o caráter de sua vida. Henryk Goldszmit (este era o seu verdadeiro nome - Janusz Korczak foi um pseudônimo tirado de um romance pouco conhecido de Kra Szewski) nasceu em Varsóvia há pouco mais de cem anos numa família abastada. O fato de seu pai ter sido um advogado conhecido e seu avô um médico mostra até que ponto o seu meio foi assimilado. Ele cresceu na solidão, preservado das influências do exterior, sem se dar conta de que era judeu e sem saber o que isso significava. Antes de terminar a escola ele perdeu o seu pai, atingido por uma doença mental. A miséria sucedeu a abundância. O jovem Henryk tomou sobre si, da maneira como pode, o encargo de sua mãe e irmã, e nos anos seguintes, freqüentemente passando fome, estudou medicina com enormes dificuldades. Quando, por fim, obteve seu diploma, as coisas começaram a melhorar, contribuindo também para isso sua reputação de escritor que se afirmava. Mas isto não durou muito tempo. Repentinamente um tipo de necessidade interior mudou completamente seu destino.

Com trinta e quatro anos ele abandonou o exercício da medicina para se ocupar de um orfanato, que do início ao seu fim, permaneceu associado ao seu nome. A idéia fixa de consagrar sua vida às crianças parecia possuí-lo. Ele não era um idealista ingênuo; o que o caracterizava era uma compreensão extraordinária da criança e a convicção da necessidade de lutar pelos seus direitos no mundo governado pelos adultos. Ele não tinha confiança no mundo governado pelos adultos, mas como cada verdadeiro reformador ele julgava que mesmo uma só pequena vela acesa valia mais que lamentar-se de escuridão. Sua intuição não excluía sua sensibilidade e ela está edificada sobre uma observação constante, clínica, poder-se-ia dizer, sobre um estudo minucioso dos fatos. Totalmente absorvido por sua única idéia, não havia lugar nele para tudo que os outros davam tanta importância - dinheiro, a celebridade, um lar, uma família.

Seu orfanato, construído e mantido exclusivamente graças às doações de pessoas caridosas, era destinado às crianças dos bairros pobres de Varsóvia. A obtenção de fundos para fins de caridade tinha então, como hoje, seu aspecto desagradável, que freqüentemente irrita aqueles que dela dependem. Korczak balançava a cabeça em desaprovação perante o preço do material gasto para encerar o assoalho antes de um baile de benemerência e ele se lamentava do tempo que perdia com quem vinha visitar o orfanato. Mas a força de sua personalidade fazia que os doadores considerassem uma honra o financiamento de seu trabalho.

No domínio da educação e da psicologia da criança, ele era um pensador pragmático original e, ao mesmo tempo, um pioneiro de princípios que serviam de modelos para outros. Ele se esforçava constantemente de refazer seu sistema baseado sobre a compreensão das necessidades mais profundas da criança. Sua influência se exercia tanto por sua presença direta quanto pelo que escrevia no jornal do orfanato preparado pelas crianças e destinados à elas mesmas; a leitura em comum dessa publicação era um acontecimento semanal dos mais importantes. Conta-se que ao longo de 30 anos de seu trabalho intenso, ele jamais deixou de fornecer um artigo por semana à redação. As regras do orfanato eram seguidas por um código, cujo parágrafo 1000 previa como a pena mais alta, a expulsão pura e simples. Cada criança que tinha reclamação contra outra tinha o direito de a fazer comparecer perante um tribunal composto por seus colegas. Korczak mesmo, se tivesse sido convocado, teria de se apresentar perante este tribunal e de se submeter a sua sentença.

À noite, após uma ronda em todos dormitórios, o Velho Doutor retornava ao seu quarto no sótão, a única "casa" que ele teve durante toda a sua vida adulta, e lá, até tarde da noite, ele colocava ordem em suas notas e escrevia.

Ele era um escritor fecundo tanto no seu domínio profissional quanto, e antes de tudo, na sua criação para as crianças e sobre as crianças. Seus livros ilusoriamente simples nas suas formas e conteúdos, impregnados na mesma proporção de melancolia e humor, refletindo seus anseios interiores, muitas vezes satiricamente áspero em relação a sociedade, sempre cheios de emoção e compreensão, deixavam traços duráveis na memória de seus leitores jovens e velhos, destinando-se a ficar gravados na história da literatura desse gênero.
Lá pelos meados dos anos trinta Korczak envolveu-se em dois empreendimentos na Palestina. O que ele aí viu o comoveu e o refrescou espiritualmente. Sob o encorajamento de numerosos amigos e antigos discípulos ele começa então a pensar seriamente em fixar-se lá para sempre. Mas havia obstáculos. O que o atormentava sobretudo, era o medo de não encontrar um sucessor adequado para continuar seu trabalho em Varsóvia. Ou seja, o pensamento de se afastar de sua terra natal lhe era insuportável. Nas cartas que ele escrevia aos seus amigos para explicar as causas de suas hesitações ele invocava o "seu Vístula" e "sua Varsóvia bem-amada", das quais ele jamais se consolaria se tivesse que deixar. Além do mais, ele estava sem dinheiro e hesitava em se colocar dependente de qualquer um.

Quando os hitleristas fecharam os judeus de Varsóvia dentro do gueto, o orfanato perdeu sua casa à Rua Kruchmalna, do lado "ariano", e transportou-se para locais provisórios, no interior dos muros do gueto. Naquele momento Korczak já percebia melhor que a maioria das pessoas que a máquina impiedosa os mataria a todos. Mas ele pensava em não renunciar ao seu direito de aliviar os sofrimentos. Alquebrado e doente, cada dia ele reunia as forças que lhe restavam e partia à procura de viveres e de medicamentos para as crianças. Às vezes ele não trazia nada de suas buscas obstinadas, outras vezes ele voltava somente com uma ínfima parte do necessário. Ele não temia solicitar com impertinência, de mendigar, de envergonhar as pessoas que se esquivavam de sua nobre ação. Nos dias em que ele nada encontrava ele não hesitava em dirigir-se mesmo aos piores especuladores e opressores judeus. Apesar de fome incessante cada vez mais insuportável e às doenças sempre mais freqüentes, ele cuidava para que seu orfanato funcionasse normalmente, a fim de que seus alunos pudessem sentir-se bem. Freqüentemente ele trazia dos locais mais distantes uma nova criança encontrada na rua, no fim de suas forças, para quem a bondade do Velho Doutor significava a salvação durante algum tempo ainda.

Nestas condições rigorosas levadas ao extremo e que em tempo normal é difícil de se imaginar, nós temos em Korczak, no seu trabalho cotidiano, um exemplo do que pode fazer um genuíno homem guiado pelo amor.

Sua vida é um modelo e somos tentados a ver nele, nesta silhueta franzina revestida de avental de inspetor que ele usava habitualmente, um exemplo típico de toda uma geração, uma encarnação da "idade da criança". Sua grandeza, que consistia nem mais nem menos em fazer seu dever, podia ser aquela de qualquer um, e mesmo sua morte trágica foi uma coisa comum, lá onde o martírio estava na ordem do dia.

Durante o "Ano Korczak", instituído pela UNESCO para celebrar o centenário de seu nascimento, os escritores, os sábios, as pessoas de boa vontade em todas as partes do mundo, procuraram enriquecer-se com o conhecimento desse homem e de suas idéias, de sua vida e de sua morte, através de livros, de artigos e simpósios.

É de se supor que graças a isto, numerosos são aqueles que tomaram conhecimento do seu nome e do que ele significa. Sem dúvida é na Polônia e em Israel que ele é mais conhecido. Mas, nesse mundo barulhento e apressado de hoje em dia, a lembrança empalidece rapidamente. A despeito de todos os esforços ela desaparece progressivamente, sob uma massa de outros negócios. Aqueles que amam Korczak e que crêem na força de seu exemplo sentiam que era necessário encontrar um modo mais concreto de imortalizar sua figura e suas idéias. Assim souberam com alegria que uma obra grandiosa seria realizada na Polônia com a aprovação e a sustentação financeira do governo: um Instituto Científico de Proteção e Educação Janusz Korczak.

Foi-lhe destinado um espaço deslumbrante de uma centena de hectares lá onde Vístula - o Vístula bem-amado de Korczak - contorna a localidade de Lomianski. O projeto já está pronto.

É um empreendimento magnífico que levará seu nome. Não uma estátua de bronze ou de mármore, mas um centro cheio de vida, para onde virão crianças de perto e de longe, onde elas crescerão, se instruirão, se divertirão juntas, próximas à natureza, numa atmosfera de compreensão e boa vontade para com todos. Os educadores e os professores aí se reunirão para aprender observar, para participar das experiências de trabalho com as crianças e os adolescentes, para aproximar-se da realização dos sonhos de Korczak, mesmo que isso seja um passo apenas para um mundo no qual as crianças possam viver felizes.

Anjos

Rubem Alves 
Eu nunca vi um anjo. Olhos que vêem anjos são olhos especiais, dádivas dos deuses, não são todos que os possuem. Eu não sou um deles. Mas os deuses me dotaram de um outro órgão para sentir os anjos: o nariz. O nariz é o meu órgão angelical. Eu não vejo anjos. Eu cheiro anjos. Para mim os anjos são seres nasais. Eles se me revelam sob a forma de perfumes. Vou andando solidamente pela rua, imerso em meus pensamentos comuns. Repentinamente, uma súbita fragrância enche a minha alma. Fico leve, perco a solidez, crescem-me asas nas costas e sou instantaneamente transportado para um não-sei-lá-onde onde fui feliz. Aquela felicidade perdida me é devolvida. Como o acontecido não foi resultado de coisa que eu tenha feito, não acho descabido imaginar que o responsável tenha sido um anjo perfumado, meu amigo. 
Minha educação angelical começou muito cedo. Tomei minhas primeiras lições num salão de barbeiro. Havia lá uma folhinha que a todos comovia e tranqüilizava: uma paisagem bucólica, um menino e uma menina, irmãozinhos, pés descalços, pelas trilhas da floresta, sozinhos, prestes a atravessar uma frágil pinguela sobre um abismo: tão fácil cair. Mas não havia razões para temer. Protegia-os um anjo de beleza máscula e brancas enormes asas. Com um quadro daqueles na parede os pais e as mães podiam dormir tranqüilos. Era o Anjo da Guarda que, ao que me consta, continua a guardar as criancinhas que atravessam pontes nas florestas. 
Numa loja de sírios aprendi sobre os pés dos anjos. O senhor humilde se aproximou do balcão e pediu: “Um pé-de-anjo número 29“. 
Logo o seu Nagib atendeu a ordem do freguês, trazendo-lhe um par daquilo a que hoje se dá o nome de tênis. Pé-de-anjo era tênis. É fácil compreender por que. O maior orgulho dos pais beatos era que a filha desfilasse na procissão vestida de anjo, o que era o terror dos patos cujas penas seriam arrancadas sem dó nem piedade para a confecção das asas dos seres celestes. Inúteis eram os grasnados dos patos: não há Anjos da Guarda para protegê-los. Branca a grinalda, brancas as asas, branco o vestido - os sapatos teriam de ser brancos também. Pé-de-anjo... 
Depois foi na escola dominical da igreja protestante que eu freqüentava. Me faziam cantar um hino que dizia: 
“Eu quero ser um anjo 
um anjo do bom Deus 
e imitar na terra 
os anjos lá do céu.“ 
Foi então que se manifestou minha vocação para a heresia. Pensei que o hino estava errado: se Deus me fizera menino era porque ele queria que eu fosse menino. O hino era, assim, uma rebelião contra a vontade divina. Deus queria que eu fosse menino e os religiosos eram mais piedosos que o próprio Deus e queriam que eu fosse anjo. Eu não queria ser anjo pois achava que vida de anjo deve ser muito chata. 
Depois, aprofundei meus conhecimentos angeológicos na leitura dos poetas. Está lá num dos poemas de Fernando Pessoa: “Que anjo, ao ergueres a tua voz, sem o saberes, veio baixar sobre esta terra onde a alma erra e soprou as brasas de ignoto lar?“ Disso sabia o poeta: que os lares perdidos não são perdidos. Estão sob a guarda dos anjos que moram na memória. Lá os lares ignotos vivem como brasas escondidas sob as cinzas do esquecimento. Mas os anjos da memória não deixam que eles sejam esquecidos. Vez por outra batem as suas asas, a cinza voa, as brasas viram fogo. Sobre isso sabe a psicanálise, muito embora ela tenha pudores de chamar os anjos pelo seu nome próprio e tenha inventado outros. Mas o nome não importa: tudo é anjo. 
Rilke foi meu outro professor. Para ele os anjos são seres terríveis, muito diferentes daquele que seguia as duas crianças pelas inocentes trilhas da floresta. Suas Elegias de Duíno se iniciam com uma invocação de Anjos surdos. “Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo senão o grau do Terrível que ainda suportamos e que admiramos porque, impassível, desdenha destruir-nos? Todo Anjo é terrível.“ 
Esse texto está carregado de mistérios que o espaço não nos deixa investigar. Basta ouvir sua exclamação pavorosa: “Todo Anjo é Terrível!“ 
Com isso concordaria Jacó, filho de Isaque, puro medo da cabeça aos pés. Ele ia andando por um caminho invocando a proteção do Anjo da Guarda. Era noite escura. E o Anjo lhe apareceu - terrível, horrendo, de espada na mão. 
“Defenda-se ou o mato“, o Anjo disse. Jacó não teve escolha. Puxou sua espada e lutou com o Anjo a noite toda. E pasmem: venceu. Ao romper da aurora, ao se despedir, o Anjo derrotado lhe disse: “Fui derrotado, mas lhe deixarei uma lembrança, para que você não se esqueça.“ E num gesto súbito tocou a coxa de Jacó com a sua espada. 
Jacó ficou manco pelo resto da vida. Nunca mais se esqueceu. A cada mancada ele se lembrava e se sentia valente. E nunca mais teve medo. E até teve de mudar o seu nome para Israel: “aquele que lutou com Deus e prevaleceu“. 
Por vezes é preciso lutar com o Anjo a noite toda para se ganhar um nome, para se descobrir a própria verdade, enterrada sob as cinzas do medo. 
Mas os Anjos de que mais gosto são aqueles que foram fazer uma visita a Abraão e Sara, avós de Jacó. Abraão já era velho, desdentado, flácido, esquecido dos distantes prazeres do amor. Sara, sua mulher, enrugada, seios murchos e compridos, pendurados, velha - só lhe restavam os prazeres da cozinha. E ela estava cozinhando para os dois hóspedes quando ouviu a conversa que se desenrolava na sala. Um deles se pôs a dizer disparates. Com certeza bebera demais. Pois ele afirmou que ela ficaria grávida e teria um filho. Sara teve um ataque de riso - riu tanto que entornou o guisado que preparava. Os visitantes se ofenderam e, como castigo, disseram que o filho que ela iria ter iria se chamar Isaque, que quer dizer “riso“. 
Esses são os “Anjos das Coisas Impossíveis“. São eles que ressuscitam os mortos, engravidam as virgens, fazem brotar fontes nos desertos e florescer as árvores sob a neve, tocam os velhos com a sua espada e coisas imprevistas acontecem. 
Mas que perfume mais gostoso! E essa fisgada na coxa! Acho que um Anjo passou por perto! Mas não tenho certeza. Enquanto duvido vou mesmo é empinar uma pipa... 
(Transparências da eternidade, Verus, 2002) 

A Oração

Rubem Alves

Hoje vou escrever sobre a arte de rezar. Dirão que esse não é tópico que devesse ser tratado por um terapeuta. Rezas e orações são coisas de padres, pastores e gurus religiosos, a serem ensinadas em igrejas, mosteiros e terreiros. Acontece que eu sei que o que as pessoas desejam, ao procurar a terapia, é reaprender a esquecida arte de rezar. Claro que elas não sabem disto. Falam sobre outras coisas, dez mil coisas. Não sabem que a alma deseja uma só coisa, cujo nome esquecemos. Como disse T. S. Eliot, temos conhecimento do movimento, mas não da tranqüilidade; conhecimento das palavras e ignorância da Palavra. Todo o nosso conhecimento nos leva para mais perto da nossa ignorância, e toda a nossa ignorância nos leva para mais perto da morte. 
A terapia é a busca desse nome esquecido. E quando ele é lembrado e é pronunciado com toda a paixão do corpo e da alma, a esse ato se dá o nome de poesia. A esse ato se pode dar também o nome de oração. 
Por detrás da nossa tagarelice (falamos muito e escutamos pouco) está escondido o desejo de orar. Muitas palavras são ditas porque ainda não encontramos a única palavra que importa. Eu gostaria de demonstrar isso - e a demonstração começa com um passeio. Para começar, abra bem os olhos! Veja como este mundo é luminoso e belo! Tão bonito que Nietzsche até mesmo lhe compôs um poema: 
“Olhei para este mundo - e era como se uma maçã redonda se oferecesse à minha mão, madura dourada maçã de pele de veludo fresco... Como se mãos delicadas me trouxessem um santuário, santuário aberto para o deleite de olhos tímidos e adorantes: assim este mundo hoje a mim se ofereceu...“ 
Tudo está bem. Tudo está em ordem. Nada impede o deleite dessa dádiva. Ninguém doente. Nenhuma privação econômica terrível. E há mesmo o gostar das pessoas com quem se vive, sem o que a vida teria um gosto amargo. 
Mas isso não é tudo. Além das necessidades vitais básicas a alma precisa de beleza. E a beleza - o mundo a serve a mancheias. Está em todos os lugares, na lua, na rua, nas constelações, nas estações, no mar, no ar, nos rios, nas cachoeiras, na chuva, no cheiro das ervas, na luz que cintila na água crespa das lagoas, nos jardins, nos rostos, nas vozes, nos gestos. 
Além da beleza estão os prazeres que moram nos olhos, nos ouvidos, no nariz, na boca, na pele. Como no último dia da criação, temos de concordar com o Criador: olhando para o que tinha sido feito, viu que tudo era multo bom. 
E, no entanto, sem que haja qualquer explicação para esse fato, tendo todas as coisas, a alma continua vazia. Álvaro de Campos colocou este sentimento num poema: 
“Dá-me lírios, lírios, e rosas também. Crisântemos, dálias, violetas e os girassóis acima de todas as flores. Mas por mais rosas e lírios que me dês, eu nunca acharei que a vida é bastante, Faltar-me-á sempre qualquer coisa. Minha dor é inútil como uma gaiola numa terra onde não há aves. E minha dor é silenciosa e triste como a parte da praia onde o mar não chega.“ 
Como se uma nuvem cinzenta de tristeza-tédio cobrisse todas as coisas. A vida pesa. Caminha-se com dificuldade. O corpo se arrasta. As pessoas procuram a terapia alegando faltar um lírio aqui, uma rosa ali, um crisântemo acolá. Buscam, nessas coisas, a única coisa que importa: a alegria. Acontece que as fontes da alegria não são encontradas no mundo de fora. É inútil que me sejam dadas todas as flores do mundo: as fontes da alegria se encontram no mundo de dentro. 
O mundo de dentro: as pessoas religiosas lhe dão o nome de alma. O que é a alma? Alma são as paisagens que existem dentro do nosso corpo. Nosso corpo é urna fronteira entre as paisagens de fora e as paisagens de dentro. E elas são diferentes “O homem tem dois olhos“, disse o místico medieval Angelus Silésius. “Com um ele vê as coisas que passam no tempo. Com o outro ele vê o que é eterno e divino.“ Em algum lugar escondido das paisagens da alma se encontram as fontes da alegria - perdidas. Perdidas as fontes da alegria as paisagens da alma se apagam, o corpo fica como uma casa vazia. E quando a casa está vazia, vai-se a alegria. E as paisagens de fora ficam feias (a despeito de serem belas). 
O mundo de fora é um mercado onde pássaros engaiolados são vendidos e comprados. As pessoas pensam que, se comprarem o pássaro certo, terão alegria. Mas pássaros engaiolados, por mais belos que sejam, não podem dar alegria. Na alma não há gaiolas. 
A alegria é um pássaro que só vem quando quer. Ela é livre. O máximo que podemos fazer é quebrar todas as gaiolas e cantar uma canção de amor, na esperança de que ela nos ouça. Oração é o nome que se dá a esta canção para invocar a alegria. 
Muitas orações são produtos da insensatez das pessoas. Acham que o universo estaria melhor se Deus ouvisse os seus conselhos. Pedem que Deus lhes dê pássaros engaiolados, muitos pássaros. Nisso protestantes e católicos são iguais. Tagarelam. E nem se dão ao trabalho de ouvir. Não sabem que a oração é só um gemido. “Suspiro da criatura oprimida“: haverá definição mais bonita? São palavras de Marx. Suspiro: gemido sem palavras que espera ouvir a música divina, a música que, se ouvida, nos traria a alegria. 
Gosto de ler orações. Orações e poemas são a mesma coisa: palavras que se pronunciam a partir do silêncio, pedindo que o silêncio nos fale. A se acreditar em Ricardo Reis, é no silêncio que existe no intervalo das palavras que se ouve a voz de “um Ser qualquer, alheio a nós“, que nos fala. O nome do Ser? Não importa. Todos os nomes são metáforas para o Grande Mistério inominável que nos envolve. Gosto de ler orações porque elas dizem as palavras que eu gostaria de ter dito mas não consegui. As orações põem música no meu silêncio.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Eu sei, mas não devia

Marina Colasanti
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer filas para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.
A abrir as revistas e a ver anúncios.
A ligar a televisão e a ver comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.
As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
A contaminação da água do mar.
A lenta morte dos rios.
Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta, de tanto acostumar, se perde de si mesma