sábado, 23 de outubro de 2010

Anjos

Rubem Alves 
Eu nunca vi um anjo. Olhos que vêem anjos são olhos especiais, dádivas dos deuses, não são todos que os possuem. Eu não sou um deles. Mas os deuses me dotaram de um outro órgão para sentir os anjos: o nariz. O nariz é o meu órgão angelical. Eu não vejo anjos. Eu cheiro anjos. Para mim os anjos são seres nasais. Eles se me revelam sob a forma de perfumes. Vou andando solidamente pela rua, imerso em meus pensamentos comuns. Repentinamente, uma súbita fragrância enche a minha alma. Fico leve, perco a solidez, crescem-me asas nas costas e sou instantaneamente transportado para um não-sei-lá-onde onde fui feliz. Aquela felicidade perdida me é devolvida. Como o acontecido não foi resultado de coisa que eu tenha feito, não acho descabido imaginar que o responsável tenha sido um anjo perfumado, meu amigo. 
Minha educação angelical começou muito cedo. Tomei minhas primeiras lições num salão de barbeiro. Havia lá uma folhinha que a todos comovia e tranqüilizava: uma paisagem bucólica, um menino e uma menina, irmãozinhos, pés descalços, pelas trilhas da floresta, sozinhos, prestes a atravessar uma frágil pinguela sobre um abismo: tão fácil cair. Mas não havia razões para temer. Protegia-os um anjo de beleza máscula e brancas enormes asas. Com um quadro daqueles na parede os pais e as mães podiam dormir tranqüilos. Era o Anjo da Guarda que, ao que me consta, continua a guardar as criancinhas que atravessam pontes nas florestas. 
Numa loja de sírios aprendi sobre os pés dos anjos. O senhor humilde se aproximou do balcão e pediu: “Um pé-de-anjo número 29“. 
Logo o seu Nagib atendeu a ordem do freguês, trazendo-lhe um par daquilo a que hoje se dá o nome de tênis. Pé-de-anjo era tênis. É fácil compreender por que. O maior orgulho dos pais beatos era que a filha desfilasse na procissão vestida de anjo, o que era o terror dos patos cujas penas seriam arrancadas sem dó nem piedade para a confecção das asas dos seres celestes. Inúteis eram os grasnados dos patos: não há Anjos da Guarda para protegê-los. Branca a grinalda, brancas as asas, branco o vestido - os sapatos teriam de ser brancos também. Pé-de-anjo... 
Depois foi na escola dominical da igreja protestante que eu freqüentava. Me faziam cantar um hino que dizia: 
“Eu quero ser um anjo 
um anjo do bom Deus 
e imitar na terra 
os anjos lá do céu.“ 
Foi então que se manifestou minha vocação para a heresia. Pensei que o hino estava errado: se Deus me fizera menino era porque ele queria que eu fosse menino. O hino era, assim, uma rebelião contra a vontade divina. Deus queria que eu fosse menino e os religiosos eram mais piedosos que o próprio Deus e queriam que eu fosse anjo. Eu não queria ser anjo pois achava que vida de anjo deve ser muito chata. 
Depois, aprofundei meus conhecimentos angeológicos na leitura dos poetas. Está lá num dos poemas de Fernando Pessoa: “Que anjo, ao ergueres a tua voz, sem o saberes, veio baixar sobre esta terra onde a alma erra e soprou as brasas de ignoto lar?“ Disso sabia o poeta: que os lares perdidos não são perdidos. Estão sob a guarda dos anjos que moram na memória. Lá os lares ignotos vivem como brasas escondidas sob as cinzas do esquecimento. Mas os anjos da memória não deixam que eles sejam esquecidos. Vez por outra batem as suas asas, a cinza voa, as brasas viram fogo. Sobre isso sabe a psicanálise, muito embora ela tenha pudores de chamar os anjos pelo seu nome próprio e tenha inventado outros. Mas o nome não importa: tudo é anjo. 
Rilke foi meu outro professor. Para ele os anjos são seres terríveis, muito diferentes daquele que seguia as duas crianças pelas inocentes trilhas da floresta. Suas Elegias de Duíno se iniciam com uma invocação de Anjos surdos. “Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo senão o grau do Terrível que ainda suportamos e que admiramos porque, impassível, desdenha destruir-nos? Todo Anjo é terrível.“ 
Esse texto está carregado de mistérios que o espaço não nos deixa investigar. Basta ouvir sua exclamação pavorosa: “Todo Anjo é Terrível!“ 
Com isso concordaria Jacó, filho de Isaque, puro medo da cabeça aos pés. Ele ia andando por um caminho invocando a proteção do Anjo da Guarda. Era noite escura. E o Anjo lhe apareceu - terrível, horrendo, de espada na mão. 
“Defenda-se ou o mato“, o Anjo disse. Jacó não teve escolha. Puxou sua espada e lutou com o Anjo a noite toda. E pasmem: venceu. Ao romper da aurora, ao se despedir, o Anjo derrotado lhe disse: “Fui derrotado, mas lhe deixarei uma lembrança, para que você não se esqueça.“ E num gesto súbito tocou a coxa de Jacó com a sua espada. 
Jacó ficou manco pelo resto da vida. Nunca mais se esqueceu. A cada mancada ele se lembrava e se sentia valente. E nunca mais teve medo. E até teve de mudar o seu nome para Israel: “aquele que lutou com Deus e prevaleceu“. 
Por vezes é preciso lutar com o Anjo a noite toda para se ganhar um nome, para se descobrir a própria verdade, enterrada sob as cinzas do medo. 
Mas os Anjos de que mais gosto são aqueles que foram fazer uma visita a Abraão e Sara, avós de Jacó. Abraão já era velho, desdentado, flácido, esquecido dos distantes prazeres do amor. Sara, sua mulher, enrugada, seios murchos e compridos, pendurados, velha - só lhe restavam os prazeres da cozinha. E ela estava cozinhando para os dois hóspedes quando ouviu a conversa que se desenrolava na sala. Um deles se pôs a dizer disparates. Com certeza bebera demais. Pois ele afirmou que ela ficaria grávida e teria um filho. Sara teve um ataque de riso - riu tanto que entornou o guisado que preparava. Os visitantes se ofenderam e, como castigo, disseram que o filho que ela iria ter iria se chamar Isaque, que quer dizer “riso“. 
Esses são os “Anjos das Coisas Impossíveis“. São eles que ressuscitam os mortos, engravidam as virgens, fazem brotar fontes nos desertos e florescer as árvores sob a neve, tocam os velhos com a sua espada e coisas imprevistas acontecem. 
Mas que perfume mais gostoso! E essa fisgada na coxa! Acho que um Anjo passou por perto! Mas não tenho certeza. Enquanto duvido vou mesmo é empinar uma pipa... 
(Transparências da eternidade, Verus, 2002) 

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